quarta-feira, 6 de julho de 2011

CÓLERA EM PORTUGAL NA DÉCADA DE 70 NO SEC. XX

Nos primeiros meses da década de 70, o alerta é dado aos Serviços do Ministério da Saúde de Portugal que existia a possibilidade do surgimento de casos de cólera em Portugal, dado que esta doença já se encontrava no Norte de África e em Espanha no que é conhecida como a 7ª pandemia.
A 15 de Setembro de 1971 era conhecido o primeiro caso de cólera num bairro degradado na margem sul do Tejo. De imediato as autoridades reagem, concentrando todas as baterias nas áreas mais degradadas da região de Lisboa, conseguindo dominar o foco da doença em alguns meses.
O tipo de cólera que tinha então surgido era do tipo do vibrião Al Tor, um vibrião menos forte. Segundos estudos da OMS da época levavam a calcular entre 25 a 100 portadores são por cada caso clínico.
Assim, numa entrevista a uma revista de especialidade médica, O Médico[1] o Dr. Arnaldo Sampaio, então Director do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Saúde, encarregado de dirigir superiormente a luta contra a cólera, referia que tinham havido 64 casos de cólera em Portugal, que todos os casos identificados foram hospitalizados, que todos os doentes de cólera recuperaram rapidamente após o tratamento, que tinham morrido de cólera dois doente que não tinham recorrido ao auxílio médico e dos de idade superior a 80 anos que iniciaram o tratamento tardiamente.
Ou seja, se fizermos as contas tinha havido uma incidência de 1.600 a 64.000 pessoas infectadas.
Para finalizar o Dr. Arnaldo Sampaio, não considerava que houvesse uma epidemia de cólera em Portugal mas sim um surto de cólera.
E dava a sua explicação:“... Uma epidemia define-se tecnicamente como aquela situação em que se observa um número de casos de doença superior ao esperado. O número de casos esperados é calculado pela média de casos nos últimos 5 ou 10 prévios anos.
Como nos últimos anos não tem havido nenhum caso de cólera, bastava que se diagnosticasse um único caso contraído em Portugal para, teoricamente, estarmos em presença de uma epidemia. Os casos importados são irrelevantes para a definição de uma epidemia.
Todavia, costuma chamar-se uma epidemia ao aparecimento num curto espaço de tempo, de grande número de casos da mesma doença. É a estas circunstâncias que em linguagem comum se chama uma epidemia. Se aceitarmos o conceito comum, isto é, quando o médico fala para o público em geral, pode dizer que o que está a decorrer em Portugal referente à cólera não preenche esse conceito.
Na realidade, os casos identificados não apareceram num curto espaço de tempo, mas em mais de 40 dias. No mesmo espaço de tempo em doentes da mesma área foi diagnosticado um número muito superior de casos de salmoneloses, e de outras afecções gastrointestinais sem que o público ou até os médicos pensem em epidemias dessas doenças...
É dentro deste conceito, talvez cientificamente errado, mas correntemente aceite, que os técnicos quando informam o público em geral, em relação à cólera, não empregam a palavra epidemia em situações semelhantes às que se observam em Portugal....”
Porém, a actuação dos poderes públicos não era coincidente com a calma demonstrada pelo gabinete expressamente criado para dirigir superiormente a luta contra a cólera.
Assim, em outra parte da entrevista concedida à revista O Médico, o Dr. Arnaldo Sampaio referia que dado que a profilaxia da cólera baseia-se sobretudo no saneamento do meio ambiente e na higiene individual e colectiva. E dadas as más condições higiénicas em que vive uma parte importante da população de Lisboa tornou-se necessário usar métodos que no se podem repetir com frequência e, por conseguinte, é necessário que a educação sanitária das populações e o saneamento do meio tomem grande incremento nos meses próximos, de modo a evitar a reinfecção das áreas onde se despendeu tanto esforço para as libertar do vibrião colérico....”
Assim numa primeira fase, os poderes públicos constituíram um verdadeiro cordão sanitário “... que nos levou a preconizar a quimioprofilaxia em massa da população que vive em más condições higiénicas na periferia de Lisboa...”
Leopoldo de Figueiredo[2], médico, antigo assistente do Prof. Fernando Fonseca, referia em 1974 que a cólera em Portugal, em 1971, iniciada no Outono desse ano, localizou-se sobretudo em Lisboa, nos bairros “de lata”, e registaram-se apenas umas escassas centenas de doentes, entre os habitantes destes bairros., com uma mortalidade bastante diminuta, cerca de uma dezena.
Como medidas tomadas, referia também que houve um verdadeiro cerco a todos estes bairros, vacinando-se a sua população em massa e fazendo-a tomar uma dose única de Fanasil, sulfamida de acção lenta. Pela rádio, pela televisão, nas escolas, nos quartéis, juntas de freguesia, etc. fez-se uma larga propaganda informativa dos meios higiénicos necessários para combater a doença especialmente no que dizia respeito aos cuidados necessários na preparação de saladas, na lavagem da fruta, no indispensável cozimento dos mariscos e na fervura da água... todos os fabricantes e vendedores de alimentos, os profissionais hoteleiros e de restaurantes etc. eram obrigados a vacinarem-se e a tomar Fanasil...”
Gonçalves Ferreira[3] referia: ... o inquérito epidemiológico demonstrou a existência de relações familiares e da convivência dos doentes entre si, podendo afirmar-se com toda a probabilidade, que os casos de doença devem ter resultado de contactos entre alguns dos que adoeceram e os tripulantes de um navio docado em 11/9/71 no estaleiro da Margueira, situado a cerca de 200 metros do bairro de barracas, (Alto da Margueira Velha com cerca de 200 barracas e 1500 pessoas) onde são reparados os grandes petroleiros, e que partira de um porto situado numa zona (Valência – Espanha) onde se haviam registado ultimamente casos de cólera, depois de se ter abastecido de alimentos frescos.... Posteriormente verificaram-se alguns casos isolados de cólera em várias povoações da margem sul do estuário do Tejo (Almada, Montijo, Alcochete) provando-se em alguns deles contactos com indivíduos residentes na região onde se registou o surto inicial. Noutros, tinha havido contactos com emigrantes ou turistas vindos de Espanha ou história de ingestão de alimentos crus... Na região de Lisboa e também num bairro de barracas (Bairro da Margueira) foi detectado a partir de 3 de Outubro um novo foco de cólera com sete casos em quatro dias...
O cerco á doença foi o seguinte: “...[4] a estratégia seguida foi a de uma acção rápida e simultânea nas áreas afectadas e zonas limítrofes, em populações particularmente expostas ao risco da doença pelas suas precárias condições sanitárias ambientais e baixo nível de educação sanitária.. No dia 24 de outubro, foram cobertos os bairros da Musgueira Norte, Musgueira Sul e Quinta do Marquês de Abrantes, no concelho de Lisboa, no fim da semana seguinte nos dias 31 de Outubro e 1 de Novembro, foram englobados os restantes bairros insalubres do concelho de Lisboa ( ver lista)...os do concelhos limítrofes (Oeiras, Sintra e Loures) e alguns da margem esquerda do Tejo (Almada, Barreiro, Moita, Montijo...)
O material envolvido: 360.000 comprimidos (“Fanasil”); 10 equipas chefiadas por pessoal especializado e com cobertura médica assegurada ; 856 pessoas nas equipas de distribuição – população abrangida, cerca de 150.000 pessoas...
Porém, e isto era o mais importante, a classe médica dava-se conta das verdadeiras condições sanitárias de muitos dos bairros das áreas mais populosas do país. Realizaram – se inquéritos que mostraram à classe médica : [5]“... o verdadeiro atraso no que dizia respeito ao abastecimento de águas, às redes de esgoto e suas estações de tratamento.
No distrito de Lisboa, refere Leopoldo de Figueiredo, por exemplo (excepto o concelho da capital e os concelhos de Oeiras, Cascais e, relativamente, os de Sintra e de Vila Franca de Xira) a população na sua maioria (com % que variam entre 50 a 100%) não dispunha de rede abastecimento de água tratada e abastecia-se de água oriunda de unidades isoladas, poços, minas ou nascentes. As análises bacteriológicas feitas a toda essa água não tratada, único abastecimento de água dessa maioria populacional, revelava que em 80% a água era suspeita ou estava contaminada (70% de contaminada e 10% de suspeita).
Em relação ao destino das águas residuais, verificou-se que praticamente não existem estações de tratamento de esgoto. Para uma população de cerca de 1 milhão e meio e habitantes do distrito de Lisboa, apenas havia no concelho de Loures uma estação de tratamento para 50.000 pessoas. O resto dos efluentes ia para pequenas linhas de água, tornando-as em autênticos caneiros abertos para o Tejo...
Nos concelhos mais distantes de Lisboa, as redes gerais de esgoto limitam-se às sedes do concelho ou a uma ou outra povoação mais importante. A maioria da população usa fossas perdidas e processos primitivos...”
Deste modo descreviam os médicos com verdadeiro espanto e horror as condições sanitárias das populações e a verdadeira bomba relógio que estás representavam em caso de uma epidemia de cólera.
Daí que não seja de espantar as medidas extremas tomadas logo nas primeiras semanas de outubro 1971, após a confirmação dos primeiros casos.
Quando as casos de extinguiram foi o momento de se iniciar, por parte daqueles que tinham tomado consciência dos perigos existentes para a saúde pública das não-condições sanitárias dos bairros degradados e do interior do país.
Nos anos seguintes, os engenheiros tiveram uma parte activa a Secção Regional de Lisboa da Ordem dos Engenheiros criava a Comissão de Engenharia Sanitária que por sua vez ajudaria a organizar no “Técnico” o 1ª Curso de Engenharia Sanitária em Portugal.
Por sua vez, os médicos traduziram inúmeras obras publicadas pela OMS sobre o assunto e debaterem os problemas inerentes à falta de condições sanitárias e procuraram estar alertas para um novo reacender da doença nos anos próximos.
Os poderes públicos alertados intensificaram os estudos para a construção de uma rede de saneamento básico cobrindo pelo menos a cidade de Lisboa e o lançamento de inquéritos para conhecer a verdadeira dimensão do problema.
Porém, mau grado o movimento que se originou por parte dos médicos e engenheiros, não houve suficiente tempo para melhorar as escassas estruturas sanitárias existentes e a 24 de abril 1974 dava-se o primeiro caso de cólera no Algarve, mais precisamente em Tavira. Três semanas depois estava em Lisboa e no Porto. A finais de Maio, registavam-se casos de cólera nos distritos de Beja, Setúbal, Aveiro e Braga... A cólera extingue-se quase simultaneamente em Faro (17 de Outubro, e Setúbal 18 de outubro e no Porto 24 de outubro e em Lisboa 25 de Outubro
Este novo surgimento da doença em Portugal iria ter consequências muito mais gravosas que em 1971. Primeiro porque a doença chegou antes do verão, aproveitando o tempo quente e depois porque, segundo alguns médicos, os poderes públicos eram outros e não tomaram as medidas necessárias de prevenção com a rapidez e energia que tinham sido tomadas em 1971.
Gonçalves Ferreira[6] refere assim “...no Verão de 1974 tendo então os governantes da saúde resolvido que a “a cólera era um problema político e não sanitário”, pelo que proibiram aos serviços de saúde, que tão boa conta tinham dado na luta contra o surto de 1971, qualquer intervenção.
O resultado foi a rápida difusão do bacilo, com milhares de casos de doença – talvez cerca de 5000, sem revelação do número exacto durante meses seguidos. Talvez pela persistência de bacilos em portadores, outro surto ocorreu no ano seguinte (1975) com menor intensidade, sem que se ficasse a conhecer a sua importância
As medidas visaram sobretudo a divulgação de medidas de higiene numa campanha maciça de educação sanitária e de instruções concretas na televisão e na radio.

Como já referi anteriormente nas epidemias causadas pelo vibrião Al-Tor o maior número de casos passa despercebido ou porque a sintomatologia é ligeira ou porque não há mesmo sintomatologia aparente. A proporção é de 25 a 100 portadores são por cada caso clínico.
Assim em 1974 foram detectados 2371 casos clínicos ou que permite desenhar um intervalo de 59.000 a 237.100 pessoas infectada.

Também Leopoldo de Figueiredo refere: “...a mentalidade agora das gentes de Portugal é outra. Tem consciência do estado deficitário do nosso saneamento e considera prioritário, neste futuro próximo, a necessidade de assegurar ao País melhoramentos gerais no que diz respeito à água, aos destinos dos lixos e das águas residuais. Não mais caneiros abertos, não mais rios poluídos, não mais água suspeita ou contaminada, abastecendo a maior parte da população. Só com uma higiene pública cuidadosa podemos ter a confiança e a certeza de que não há vibrião de cólera ou outro microorganismo patogénico que possa subsistir fora do hospedeiro e propagar assim o mal a outros indivíduos
... Em relação aos cuidados acerca das pessoas, muitos países exigem. à passagem da fronteira, o atestado de vacina anticolerica. Outros obrigam á ingestão de químico-fármacos que actuam sobre o vibrião, o que não é muito aconselhável, por certas pessoas serem sensíveis a esta espécie de medicamentos.
Não vindas munidas de atestados de vacina, as pessoas podem ficar sob vigilância até 5 dias, bastando apresentar-se nos serviços de saúde designados, uma vez por dia

CONCLUSÃO

Desta pequena resenha, várias ideias ficam:

-         duas formas diferentes de atacar o mesmo problema, o surgimento de casos de doenças contagiosas

Em 1971 os poderes públicos juntamente com os médicos fizeram um verdadeiro cordão sanitário, em redor da cidade de Lisboa. Em 1974 os poderes públicos preferiram não ter uma atitude de ataque à doença, obrigando a população a tomar medidas de higiene e de profilaxia, mas sim tentando educar as populações.
Se em 1971 a cólera em Portugal reduziu-se e foi extinta em algumas semanas, já o episódio de 1974 foi muito mais dramático. Porém, em 1971 Portugal foi penalizado internacionalmente, havendo alguns países que obrigaram os viajantes que vinham de Portugal a mostrar o boletim de vacinas, e também houve prejuízo no comércio de mercadorias. Como bem referiu Arnaldo Sampaio:” ...Portugal cumpriu escrupulosamente o regulamento Sanitário Internacional e por isso arrisca-se a figurar como sendo o país da Europa mais atingido por essa doença exótica nos últimos meses....”
Não quero tirar ilações, mas sim mostrar as duas atitudes que desde sempre tem existido por parte dos poderes públicos perante a ameaça de epidemia. Uma atitude firme e severa por parte dos poderes públicos ou uma atitude apaziguadora e de não-intervenção directa, sobretudo para não alarmar as populações nem afugentar o comércio ou o turismo como bem refere Leopoldo de Figueiredo : “...Mas a tendência, para evitar prejuízos no turismo e nas trocas comerciais, é de reduzir ao mínimo estes cuidados, na certeza de que o principal é evitar, dentro do próprio pais, que a doença possa alastrar-se, o que se consegue com um perfeito saneamento e higiene pessoal....”
Certo é que tanto em 1971 como em 1974 os médicos tiveram um papel de extrema importância nas decisões tomadas para enfrentar a doença. Em 1971 ganharam  aqueles que pensam que deve existir uma intervenção enérgica, em 1974 por considerações políticas como bem o referiu Gonçalves Ferreira e também Lobato Faria : “...Para outros, como Lobato de Faria[7]: “.... as acções empreendidas (ver Ag. 65)... foram coroadas de muito maior êxito do que as que, de natureza semelhante, tinham sido empreendidas em 1971, durante a epidemia de cólera; este facto pode atribuir-se, por um lado, á maior experiência dos serviços, mas, sem dúvida, a sua mais importante foi o clima de confiança da população nas autoridades orientadoras da campanha, clima criado após a mudança radical de regime político operada no dia 25 de Abril em 1974 em Portugal...”

- mas em ambos os episódios, os médicos referiram bem as deploráveis condições sanitárias dos bairros degradados de Portugal, nomeadamente os localizados nas duas áreas metropolitanas, Lisboa e Porto. Ambas duramente atingidas aquando da epidemia de 1974. Os médicos referiram bem que não se justificaram casos em populações servidas por uma rede de abastecimento de água e de saneamento básico. Nada que os médicos e higienistas já não tivessem referido desde o século XIX.




[1] Sampaio, Arnaldo – A Cólera em Portugal – separata de “O Médico” n.º 1056 pp. 605 / 609 vol. LXI - 1971
[2] Figueiredo, Leopoldo – Portugal na 7ª pandemia de cólera – Separata de “O Médico” n.º 1214 PP 549/555, vol. LXXIII - 1974
[3] Gonçalves Ferreira, F.A. – História da Saúde e dos Serviços de Saúde em Portugal – F.C.G. – 1990 – Pa. 555
[4] Gonçalves Ferreira, Pa. 558 E seg.
[5] Figueiredo, Leopoldo, obra citada
[6] Gonçalves Ferreira, Ag. 568 e seg.
[7] Lobato de Faria, pag. 65

quarta-feira, 6 de abril de 2011

CONTÁGIO OU NÃO CONTÁGIO

Escolhi este título porque o que vou referir, não é mais do que uma simples aproximação a um debate que atravessou as primeiras décadas do século XIX, agudizando as opiniões e obrigando os responsáveis a tomar difíceis decisões.

Até às afirmações científicas de Pasteur da existência do micróbio e a afirmação científica da existência do contágio, já na década de 60 de oitocentos, a classe médica não tinha meios de demonstrar as suas convicções.

Como bem referiu  então Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, Dr. Beirão (1) numa acalorada discussão de um parecer sobre a cólera em 1848, ao citar um médico francês: “… Mas he necessário convir que além de todas estas influencias predisponentes e occasionaes, há numa outra causa muito mais poderosa e muito mais activa, que nes he desconhecida. As numerosas hypotheses que se teem estabelecido para determinar sua natureza, não tem sido possível demonstra-las. Há hum principio especial que dá origem á cholera epidémica, assim como há hum principio especial que dá logar á peste, á febre amarella, ás bexigas, á syphilis e a huma outra immensidade de moléstias: principio que nos força a admittir os effeitos que elle produz, mas cuja essencia nosimpossivel (por agora) penetrar…”

De facto, a Europa via-se a braços desde 1830 com uma terrível ameaça: a cólera que atravessando pela primeira vez a grande maioria dos países europeus, trouxe miséria e ruína. Em 1848, a cólera ameaçava de novo a Europa, que atingiria Portugal na década de 50, em diferentes vagas.

Em Janeiro de 1848, a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa dava início a uma discussão de um parecer sobre a cólera, pois o flagelo ao aproximar-se requeria medidas drásticas a bem de todos.

É pois no decurso da discussão deste parecer, que afloram duas escolas de pensamento: os que são contra a existência de contágio e consequentemente contra a existência de quarentenas e lazaretos e os que não podendo argumentar cientificamente com a certeza de que a cólera era uma doença contagiosa preconizavam por medidas de segurança a continuação da existência das referidas quarentenas e lazaretos para os navios que aportassem as barras portuguesas.

De facto, tudo se resumia ao entrave ou não da livre circulação de bens comerciais.

Daniel Panzac, no seu livro “Quarantaine et Lazarets” (2) referia que no decurso dessa décadas o mundo ocidental científico viu-se agitado por uma querela entre contagionistas e anti-contagionistas, sobre as doenças infecciosas e nomeadamente da peste.

Alerta este autor que não devemos sobretudo olhar para esta querela, como algo de estéril, como se uma Guerra do Alecrim e da Manjerona se tratasse, mas sim como um confronto de ideias impulsionadas pelo desenvolvimento técnico e pela aceleração das trocas comerciais. Nessas décadas, de profunda mutação económica, pesava cada vez mais a livre circulação nas economias regionais e nacionais.

Portugal não era excepção.

O Governo a pedido da Comissão de Saúde Pública(3) em Fevereiro de 1854 que. “… tomando na devida consideração e representação da Associação Commercial do Porto, em que da parte do commercio d’aquella cidade expõe a esta Camara vários aggravos que diz ter soffido do Conselho de Saude Publica do Reino, terminando por pedir uma nova organização para o mesmo Conselho, e que no numero dos seus vogaes se comprehendam alguns caracteres conspícuos das outras classes da sociedade…
Considerando, que de facto, a que a dita representação allude são antes uma consequencia dos regulamentos sanitarios relativos à procedencia dos portos sujos ou suspeitos, pelos quaes na actualidade se regem as Repartições de Saude…  jamais se podem suppor procedimentos ou vistas arbitrarias e parciaes, ou de desconsideração para com uma praça, qual a do Porto… é de parecer que faça proceder à revisão dos regimentos de saude, que regulam as procedências de paizes estrangeiros, tomando na devida consideração as conclusões adoptadas pela Conferencia sanitaria internacional, que em 1851 se reunio em Pariz: tudo por forma que os ditos regulamentos, sem exigirem do commercio condições escusadamente onerosas, nem lhe imporem sacrifícios inúteis, conservem comtudo para a saude publica as preciosas garantias contra a importação das moléstias: garantias de que a causa publica não póde nem deve prescindir…” a este pedido da Comissão de Saúde, respondeu o Governo ordenando a constituição, a 5 de Maio de 1854 e assinado por Rodrigo da Fonseca Magalhães: “… Commissão espeical de refórma… para conciliar a segurança da saude publica do Reino com o menor gravame do commercio…”

A regulamentação em matéria de sanidade marítima não era de forma alguma algo novo para os comerciantes portugueses, nem para os da Europa, nomeadamente para os da bacia do Mediterrâneo.

Desde muito cedo que as entidades oficiais tinham apreendido, não por respostas científicas, mas sim pela observação que a quarentena assim como uma severa e rigorosa legislação contribuíam decisivamente para proteger as populações em caso de epidemia, nomeadamente da peste.

Afina-se, com o passar do tempo o papel de um corpo administrativo que zela pelo bom cumprimento das leis sanitárias que cada vez são mais rigorosas e preocupadas sobretudo pela protecção das populações em detrimento da livre prática comercial.

Finalmente, edificam-se ou reformam-se os lazaretos, edifícios apropriados para as quarentenas das mercadorias e das tripulações dos navios ou dos viajantes. O lazareto transforma-se na peça principal do cordão sanitário, local específico das quarentenas.

A autoridade médica implicava uma união de esforços com a autoridade policial numa atitude fiscalizadora e repressiva, se tal fosse necessário.

Deste modo, não é de estranhar que como referiu Adrien Proust citado por Vitorino de Freitas(4): “… a quarentena… era supportada sem impaciencia: mas, com o avançar cada vez mais accentuado do commercio, deu-se uma transformação no espirito das populações com respeito às longas quarentenas. As administrações sanitárias foram vivamente atacadas: embarassavam prejudicialissimamente os interesses commerciais e da navegação. Em França, a Academia de Medecina, apoz uma discussão notável, pronunciou-se contra as praticas antigas em contradicção com os progressos científicos. Por outro lado a navegação a vapor substituiu quasi por toda a parte a navegação à vella… N’esta nova situação a antiga quarentena apparecia com um obstaculo á realisação do progresso da nossa época. E além d’isso levantaram-se grandes clamores contra a diversidade de regulamentos e praticas sanitárias em vigor…”

Assim, concluiu o professor português: “… Não posso demorar-me na narração da lucta travada contra o systema quarentenario, mas este isolamento justificavel e preciso, quando ainda eram ignoradas as condições de transmissão das doenças pestilenciaes e portanto constituía o instrumento por excellencia da prophylaxia sanitaria marítima, tinha de ceder o logar a outras medidas mais scientificas, ao passo que aquellas condicções se iam tornando cada vez mais conhecidas…”

Porém, no momento dos protestos dos comerciantes portugueses, os conhecimentos científicos ainda eram escassos sobre a forma de propagação das doenças epidémicas.

Este era um dos argumentos dos médicos para não descurar as medidas sanitárias existentes e que tão bons resultados tinham dado no decurso de décadas.

Assim, no momento da redacção da Consulta da Comissão especial de reforma de Julho de 1855(5), respondendo às solicitações do governo de então, o voto da Escola Médica de Lisboa referia que: “… reconhece, que a saude publica se deve considerar sempre como primeiro interesse…” e o parecer da Universidade de Coimbra : “… A Faculdade de Medicina entende que unanimente, que a Sciencia ainda não póde fixar d’um modo decretório, e positivo o periodo de incubação do germem, miasmam ou principio reproductor da cholera…” deste modo a Comissão declarava que “... a base scientifica, ou fundamento, que o Conselho de Saude teve para estabelecer as quarentenas, e que a Commissão adopta, foi o tempo provável da incubação dos germens contagiosos para a desenvolução das moléstias, deduzido das repetidas observações relativas á peste, e que o Conselho de Saude para segurança da saude publica fez extensivas á febre amarella, e á cholera-morbus…
Se o Conselho de Saude prescreve iguaes medidas sanitárias para a febre amarella, e para a cholera-morbus epidémicas, é por que, sendo por Lei responsável pela salvaguarda da saude publica, deve proceder com toda a cautella, e segurança n’estes assumptos, não estando ainda decidido pela Sciencia, que a cholera morbus não é contagiosa, antes pelo contraio havendo hoje dados mais prováveis de que o seja, tendo por isso mudado a este respeito de opinião muitos médicos distinctos, que outr’ora eram declarados anti-contagionistas…”  concluindo: “… Fica por tanto de todo evidente, que as medidas sanitárias portuguezas são na sua generalidade muito menos onerosas ao commercio do que as estipuladas pela Conferencia Internacional de Paris…”

A Comissão votava assim a favor da manutenção das medidas sanitárias, incluindo as quarentenas. A Comissão era composta pelos membros da Comissão de Saúde Pública do reino e por representantes das “três Escholas superiores de Medicina, cujo voto era decididamente o mais authorisado possível…”

O documento emanado pela Comissão especialmente criada para responder ás queixas das principais associações entregues na Câmara dos Representantes era uma reposta fundamentada pelos factos e pelas experiências científicas da época.

Os médicos continuavam a aconselhar, à falta de melhor, o cordão sanitário, a quarentena e severas restrições ao comércio de modo a proteger as populações de eventuais epidemias. Pediam um novo lazareto ou substanciais melhoramentos no existente e avançavam uma proposta de lei: “artigo 1ª – É o Governo authorisado a estabelecer um direito sanitário correspondente á visita sanitaria de todos os navios que entrarem nos portos do Reino, ao serviço, e operações de quarentena dos navios, fazendas, e pessoas procedentes de portos, ou paizes infeccionados, ou suspeitos de moléstia importavel epidémica, ou contagiosa…”

Para uma melhor compreensão dos conceitos, deixemos mais uma vez os médicos falar: “… Que como a divergência d’opiniões poderia depender da falta de rigor nas definições, elle hia dizer o que entendia por contagio, e a que chamava infecção. Que doença contagiosa era a que se propagava d’individuo a individuo, por hum agente capaz de reproduzir n’outro individuo huma doença igual. Infecção porém era a acção pela qual certas moléstias se communicão em virtude d’um foco que he constituído por emanações animaes ou vegetaes em putrefacção, ou por exhalações humanas. Que estas emanações erão mórbidas ou não mórbidas…”(6)

Assim, dois casos distintos surgiam: as doenças contagiosas, como a sífilis e outras que não sendo contagiosas, seriam infecciosas. Daí que a discussão centrava-se na hipótese do contágio ou não contágio de doenças epidémicas. Se fossem consideradas contagiosas, a existência de quarentenas e lazaretos era aconselhada e mesmo vivamente recomendada, mas se não o fossem qual o motivo para tais entraves?

Como dizia Albino Candido(7), relator do Parecer sobre a Cólera em 1848, no seio da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa: “… Evitar a introducção da epidemia seria um objecto capital em favor da saude publica. Vejamos os meios que se hão proposto e executado para alcançar este fim; mas antes é necessário discutir hum ponto de partida fundamental n’esta questão, vem a ser: A cholera será uma moléstia que he propagada por via do contagio, ou, como todas as epidemias, a cholera propargar-se-há pela atmosphera. … Esta questão foi ardentemente debatida em 1831 e 1834; mas averiguados bem os factos que se allegão, não póde haver duvida que a cholera não he contagiosa…”

Em 1855, o Conselho de Saúde Pública do Reino referia(8): “… Se acaso em 1832 a guerra civil, que então devorava o paiz, tivesse dado logar, teria talvez apparecido a historia dessa invasão da epidemia em Portugal, e não estaríamos nós ainda hoje quasi ba absoluta ignorância de sabermos como ella se desenvolveu… como se propagou pelo paiz inteiro…”

Para além desta doença e pela sua situação geográfica, Portugal devia temer a febre amarela que já tinha atacado Lisboa. Daí a opinião da Comissão especial do Conselho de Saúde Pública do reino de manter as restrições necessárias.

No entanto, nem mesmo o perigo real fazia com que os comerciantes não deixassem de se queixar das medidas impostas e em 1857 era publicado na cidade do Porto “Memória sobre a Medidas Sanitárias executadas em 1856 contra o Commercio Maritimo do Porto, a pretexto da Febre Amarela(9): “… Annunciando um Jornal desta Cidade, que na Camara dos Snrs. Deputados da Nação, a Commissão de Saude Publica se occupa da representação da Associação Commercial do Porto, relativa ao melhoramento e reforma da lei e regulamentos de policia sanitaria, deste porto; julgamos opportuno habilitar a dita commissão e a Camara, com a Memoria dos factos que se deram nesta Cidade, no anno findo, acobertados com a denominação de medidas sanitárias, - e bem assim de todas as circumstancias de que foram revestidos…”

A polémica estava lançada e o tom do preâmbulo não deixava margem para dúvidas dos ânimos exaltados de alguns comerciantes. Queixas de exageradas medidas de repressão, que provocaram avultados prejuízos comerciais à cidade do Porto, aliadas a atitudes discriminatórias entre os portos de Lisboa e do Porto, compõem esta memória.

Curioso, é notar, que os comerciantes se apoiavam nas propostas da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, na deliberação da referida Comissão especial do Conselho de Saúde Pública do Reino: “… E foi por certo, com este pensamento que a Eschola Medico-cirurgica desta Cidade, aconselhou o estabelecimento do Conselho de Salubridade publica, nos portos de grande commercio, composto de facultativos e representantes da localidade, e de agentes do governo; devendo estes conselhos, ainda que succursaes do Conselho Central do Reino, ter attribuições bem definidas em regulamentos especiais, que lhes confiram authoridade plena para providencial nos casos urgentes e imprevistos, sem dependência do Conselho Superior…”

O parecer da Escola Médica do Porto pendia pelo não contágio e daí a inutilidade de medidas restritivas ao comércio.

O panfleto terminava num tom quase apoteótico. “… Se Portugal quer seguir as nações cultas, na sua marcha de civilisação é necessário acompanhal-as, e copiar dellas o que é justo e mais abonado pela sciencia, nas suas applicações praticas…”

A polémica entre o Conselho de Saúde Pública do Reino e os comerciantes do Porto sobre as medidas sanitárias exigidas não era nova. Já em 1844 o Governo tinha sido obrigado a intervir(10): “… Tendo sido presente A Sua Magestade a Rainha a representação que… dirigiu a direcção da Associação Commercial do Porto sobre as providencias sanitarias mandadas observar naquella cidade e porto… Manda, que o Governador Civil do Porto lhe faça constar o seguinte:
1º Que as providencias sanitarias mandadas observar na barra do Porto não são novas; nova é simplesmente a sua execução, a que obstaram por muito tempo circunstâncias, que se hoje se acham removidas a requerimento da Camara Municipal da mesma cidade; e que a pratica anteriormente em vigor, e cuja continuação requer a direcção, era um abuso, que podia ter para os habitantes da cidade e para os de todo o Reino as mais funestas consequências
4º Que o Governo tem sempre muita consideração pelos interesses commerciaes dos portuenses, e constante desejo de os promover; mas o Governo faltaria ao seu primeiro dever, se para favorecer o commercio dos negociantes do Porto puzesse em risco a saude de todos os habitantes daquella cidade, e de todo o Reino…

E em 1848, o Duque de Saldanha assinava”… Constando, que a cholera-morbus se tem exarcebado nos portos do Levante, e que de Moscow se propagará a alguns dos portos do Baltico, - sendo por isso necessário tomar as providencias indispensaveis para assegurar a saude publica…” realçando as opiniões contrárias dos contagionistas e anti-contagionistas, o Governo preferia legislar no sentido de: “… attendendo ao votodo Conselho de Saude Publica, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, e do Conselho da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa; -, considerando que em todas estas corporações scientificas houve divergências notaveis de opinião sobre a qualidade, e rigor das providencias preventivas, que todos aconselham; - … 2º Em quanto se não achar preparado nas immediações da cidade do Porto um Lazareto provisorio, só no porto de Lisboa terá logar a admissão destes navios…”

Mesmo nos anos de epidemia, médicos haviam que protestavam veementemente contra o Conselho de Saúde Pública do Reino e das suas decisões. Protestos que eram publicados na imprensa da especialidade como esta carta aberta de 1855(11): “...
Posto isto vamos examinar qual tem sido o comportamento do Conselho de Saude, segundo o que se deve deprehender do edital de 29 de Outubro, o qual contem as sua ultima verba.
Não nos demoraremos a provar que o Conselho de Saude é contagionnista, todos os seus actos teem provado exuberantemente que tal é a crença desta corporação no que respeita ás duas epidemias que teem ultimamente assolado o mundo nos dois hemispherios – a cholera e a febre amarella: registâmos aqui este facto para reforçar mais a nossa analyse.
O Conselho de Saude procura, ao que parece, tranquilisar os animos da população de Lisboa que suppõe victima de terrores infundados: para o conseguir annuncia que estão tomadas as providencias possíveis para extinguir a epidemia que suspeita haver-se manifestado na Azambuja, e para evitar que d’ali ou de qualquer outro ponto affectado possa ser importada á capital.
As providencias que o Conselho annuncia, e em que parece confiar deveras, são todas fluviaes… o que sabemos, e comnosco sabe a capital inteira, é não só dos pontos affectados ou suspeitos, como o Conselho quizer, do Ribatejo, mas de Coimbra, da Bairrada, do Porto, de toda a parte emfim, estão constantemente a chegar por terra pessoas e mercadorias, que não soffrem nem soffreram nunca impedimento algum em seu transito, ficando reservado unicamente para as cartas, e para as mercadorias e indivíduos que veem embarcados, todo o rigor das fumigações e quarentenas.
Dever-se-há concluir de tudo isto, que não teem importância alguma as providencias de que o Conselho de Saude parece fazer alarde, e que fôra illusoria e ridícula a esperança de ver por ellas preservada a capital da epidemia, mesmo quando se acreditasse piamente no contagio como unico meio de propagação? A resposta não é duvidosa: quem ousaria responder negativamente? Nem o próprio Conselho de Saude…
As intenção do Conselho podem ter sido santas, queremos mesmo acreditar que o foram; mas nem por isso o seu procedimento deixa de ser altamente censurável.
Para os demonstrar limitar-nos-hemos a indicar os resultados absurdos, ou talvez dignos de mais severa qualificação, a que por similhante procedimento tem dado, e se obstina a dar logar:
1º o commercio de importação tem continuado a ser vexado pelas quarententas, depois de haverem cessado inteiramente os motivos que as podiam justificar. Será difícil dizer se esta resolução pecca mais pelo absurdo, se pelo ridículo.
2º O Conselho de Saude procurou inspirar ao povo uma confiança infundada, confiança que não podia ter, e que a epidemia se declarar de um momento para outro com intensidade poderá ser origem de mui graves males.
3º Declarando Lisboa livre da epidemia, e concedendo cartas limpas aos navios que largam do nosso porto, o Conselho de Saude ou renega as suas crenças medicas, sem causa plausível, ou então expondo á invasão da epidemia, com consciência e de animo deliberado, as localidades isentas della, assume uma responsabilidade tremenda, e commette um acto sobre cuja moralidade não queremos pronunciar-nos aqui…
Não insistiremos mais. Estimaremos que o Conselho de Saude sabra aproveitar, para entra em melhor caminho, as reflexões que lhe dirigimos sem desejo algum de o hostilisar. Na posição em que se acha cumpre-lhe inteira submissão aos dictames da sciencia, e aos inflexíveis preceitos da moralidade; esperamos que o Conselho o reconheça, e se apresse a emendar o mal que tem feito e a recuperar a consideração e a estima publica que tão precisas lhe são…”

Em 1860 era publicado o Regulamento das Quarentenas(12) em que o preâmbulo explicitamente referia: “…O Conselho de saude publica, considerando a conveniência de reunir em um só regulamento as medidas quarentenárias em vigor, relativas á cholera-morbus, á febre amarella e á peste, tendo attenção aos importantes trabalhos das conferencias internacionais sanitarias, celebradas em Paris em 1851 e 1859; e usando da faculdade que lhe confere o artigo 16º e 19º do decreto com força de lei de 3 de Janeiro de 1837, faz saber:
Artigo 1º: Nenhum navio, que entrar nos portos do reino, poderá communicar com a terra sem que primeiro seja escrupulosamente visitado pela respectiva estação de saude…”

Seguia-se a confirmação das quarentenas, a estadia no lazareto, os dias e as medidas sanitárias obrigatórias.

O pensamento médico de protecção da saúde pública ganhava frente aos desejos expressos dos comerciantes, que perante as medidas sanitárias falavam de enormes prejuízos.

Bernardino António Gomes filho no seu relatório publicado na Gazeta Médica em 1858 e posteriormente apresentado na Conferência Sanitária Internacional de 1866 em Constantinopla(13), referia com clareza que todo o tipo de esforços tinham sido empregues para desacreditar as medidas de sanidade marítima e a convencer a opinião pública da sua total inutilidade.

Homens de ciência, diplomatas e governos tinham estado de acordo e não raro os Estados mais poderosos exerceram a este respeito pressões incómodas e muitas vezes injustas.

Esta tendência fora ajudada pelos médicos, muitos pelas suas convicções científicas e do desejo de destruir qualquer entrave ao comércio, ao mesmo tempo que permitia facilitar as vias de comunicação; porém, alguns houvera que tinham expressado essas opiniões por falta de coragem em declarar opinião contrária.

Já em 1848, o médico Dr. Beirão(14) tinha denunciado com veemência : “… E argumenta-se contra lazaretos e quarentenas porque o commercio soffre! e lança-se mão d’hum semelhante argumento no recinto d’huma sociedade scientifica? Por Deos, senhores, pela Sciencia, e pela humanidade não nos tornemos a servir de semelhante methodo d’argumentação na Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa! que he o commercio d’hum reino na presença da saude d’hum povo? que he a bolça em comparação da vida! de que servem os proveitos do commercio ao paiz que geme debaixo do pezo da cholera? dai primeiro que tudo vida e saude ao povo para que posa gozar dos benefícios das relações commerciais!...”

Vitorino de Freitas(15) resumia em 1910: “… (o) isolamento justificava e preciso, quando ainda eram ignoradas as condicções de transmissão das doenças pestilenciaes e portanto constituía o instrumento por excellencia de prophylaxia sanitaria marítima, tinha de ceder o logar a outras medidas mais scientificas, ao passo que aquellas condicções se iam tornando mais conhecidas. A evolução constante dos conhecimentos humanos torna inútil e errado n’um dia, o que no dia antecedente era uma necessidade bem fundamentada…”

A luta entre o comércio e a opinião dos médicos sobre a protecção da saúde pública e nomeadamente através de uma sanidade marítima rigorosa seria uma das pedras de toque das últimas décadas de oitocentos.

(1) Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, 1848
(2) Pansax, Daniel – Quarantaines et Lazarets – l’Europe et la peste d’Orient – Éditions: Edisud. Aix-en-Provence – 1986 – pag. 102 e seg
(3) in Revisão dos Regulamentos Sanitários – Lisboa – Imprensa Nacional 1858 – pag.70 e seg.
(4) Freitas, José Vitorino de – Sanidade Marítima – Lições professadas no Instituto Central de Hygiene – Lisboa – 1910 – pag. 130 e seg.
(5) in Revisão dos Regulamentos Sanitários – Lisboa – Imprensa Nacional 1856 – Comissão especial de Reforma dos Regulamentos Sanitários de 2 de Julho de 1855
(6) e (7) Jornal da Sociedade das Ciências Médicas Lisboa – op cit.
(8) Breve relatório da cholera-morbus em Portugal nos annos de 1853 e 1854, feito pelo Conselho de Saude Publica do Reino – Jornal da Sociedade das Ciências Médicas – Tomo XVI – Maio
(9) Memoria sobre as medidas sanitarias executadas em 1856 contra o Commercio Maritimo do Porto, a pretesto da febre amarella – Porto 1857
(10) in. Documentos Informação do Conselho de Saude Publica aos Senhores Deputados da Nação – Lisboa – 1854
(11) Gazeta Médica de Lisboa – 3º ano, nº 68 – 16 de Novembro 1855
(12) Regulamento das Quarentenas que há de observar-se nos Portos do Reino de Portugal e Ilhas Adjacentes contra a Cholera-morbus, febre amarella e peste bubonica – Conselho de Saude Publica – 8 de Março 1860
(13) Gomes (filho) Bernardino António Gomes – Aperçu historique sur les épidémies de choléra-morbus e de fievre jaune en Portugal, dans les années de 1833-1865 – Constantinople 1866 –
(14) – Jornal da Sociedade das Ciências Médicas – op. Cit
(15) – Freitas, José Vitorino  de – op. cit.