quarta-feira, 6 de julho de 2011

CÓLERA EM PORTUGAL NA DÉCADA DE 70 NO SEC. XX

Nos primeiros meses da década de 70, o alerta é dado aos Serviços do Ministério da Saúde de Portugal que existia a possibilidade do surgimento de casos de cólera em Portugal, dado que esta doença já se encontrava no Norte de África e em Espanha no que é conhecida como a 7ª pandemia.
A 15 de Setembro de 1971 era conhecido o primeiro caso de cólera num bairro degradado na margem sul do Tejo. De imediato as autoridades reagem, concentrando todas as baterias nas áreas mais degradadas da região de Lisboa, conseguindo dominar o foco da doença em alguns meses.
O tipo de cólera que tinha então surgido era do tipo do vibrião Al Tor, um vibrião menos forte. Segundos estudos da OMS da época levavam a calcular entre 25 a 100 portadores são por cada caso clínico.
Assim, numa entrevista a uma revista de especialidade médica, O Médico[1] o Dr. Arnaldo Sampaio, então Director do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Saúde, encarregado de dirigir superiormente a luta contra a cólera, referia que tinham havido 64 casos de cólera em Portugal, que todos os casos identificados foram hospitalizados, que todos os doentes de cólera recuperaram rapidamente após o tratamento, que tinham morrido de cólera dois doente que não tinham recorrido ao auxílio médico e dos de idade superior a 80 anos que iniciaram o tratamento tardiamente.
Ou seja, se fizermos as contas tinha havido uma incidência de 1.600 a 64.000 pessoas infectadas.
Para finalizar o Dr. Arnaldo Sampaio, não considerava que houvesse uma epidemia de cólera em Portugal mas sim um surto de cólera.
E dava a sua explicação:“... Uma epidemia define-se tecnicamente como aquela situação em que se observa um número de casos de doença superior ao esperado. O número de casos esperados é calculado pela média de casos nos últimos 5 ou 10 prévios anos.
Como nos últimos anos não tem havido nenhum caso de cólera, bastava que se diagnosticasse um único caso contraído em Portugal para, teoricamente, estarmos em presença de uma epidemia. Os casos importados são irrelevantes para a definição de uma epidemia.
Todavia, costuma chamar-se uma epidemia ao aparecimento num curto espaço de tempo, de grande número de casos da mesma doença. É a estas circunstâncias que em linguagem comum se chama uma epidemia. Se aceitarmos o conceito comum, isto é, quando o médico fala para o público em geral, pode dizer que o que está a decorrer em Portugal referente à cólera não preenche esse conceito.
Na realidade, os casos identificados não apareceram num curto espaço de tempo, mas em mais de 40 dias. No mesmo espaço de tempo em doentes da mesma área foi diagnosticado um número muito superior de casos de salmoneloses, e de outras afecções gastrointestinais sem que o público ou até os médicos pensem em epidemias dessas doenças...
É dentro deste conceito, talvez cientificamente errado, mas correntemente aceite, que os técnicos quando informam o público em geral, em relação à cólera, não empregam a palavra epidemia em situações semelhantes às que se observam em Portugal....”
Porém, a actuação dos poderes públicos não era coincidente com a calma demonstrada pelo gabinete expressamente criado para dirigir superiormente a luta contra a cólera.
Assim, em outra parte da entrevista concedida à revista O Médico, o Dr. Arnaldo Sampaio referia que dado que a profilaxia da cólera baseia-se sobretudo no saneamento do meio ambiente e na higiene individual e colectiva. E dadas as más condições higiénicas em que vive uma parte importante da população de Lisboa tornou-se necessário usar métodos que no se podem repetir com frequência e, por conseguinte, é necessário que a educação sanitária das populações e o saneamento do meio tomem grande incremento nos meses próximos, de modo a evitar a reinfecção das áreas onde se despendeu tanto esforço para as libertar do vibrião colérico....”
Assim numa primeira fase, os poderes públicos constituíram um verdadeiro cordão sanitário “... que nos levou a preconizar a quimioprofilaxia em massa da população que vive em más condições higiénicas na periferia de Lisboa...”
Leopoldo de Figueiredo[2], médico, antigo assistente do Prof. Fernando Fonseca, referia em 1974 que a cólera em Portugal, em 1971, iniciada no Outono desse ano, localizou-se sobretudo em Lisboa, nos bairros “de lata”, e registaram-se apenas umas escassas centenas de doentes, entre os habitantes destes bairros., com uma mortalidade bastante diminuta, cerca de uma dezena.
Como medidas tomadas, referia também que houve um verdadeiro cerco a todos estes bairros, vacinando-se a sua população em massa e fazendo-a tomar uma dose única de Fanasil, sulfamida de acção lenta. Pela rádio, pela televisão, nas escolas, nos quartéis, juntas de freguesia, etc. fez-se uma larga propaganda informativa dos meios higiénicos necessários para combater a doença especialmente no que dizia respeito aos cuidados necessários na preparação de saladas, na lavagem da fruta, no indispensável cozimento dos mariscos e na fervura da água... todos os fabricantes e vendedores de alimentos, os profissionais hoteleiros e de restaurantes etc. eram obrigados a vacinarem-se e a tomar Fanasil...”
Gonçalves Ferreira[3] referia: ... o inquérito epidemiológico demonstrou a existência de relações familiares e da convivência dos doentes entre si, podendo afirmar-se com toda a probabilidade, que os casos de doença devem ter resultado de contactos entre alguns dos que adoeceram e os tripulantes de um navio docado em 11/9/71 no estaleiro da Margueira, situado a cerca de 200 metros do bairro de barracas, (Alto da Margueira Velha com cerca de 200 barracas e 1500 pessoas) onde são reparados os grandes petroleiros, e que partira de um porto situado numa zona (Valência – Espanha) onde se haviam registado ultimamente casos de cólera, depois de se ter abastecido de alimentos frescos.... Posteriormente verificaram-se alguns casos isolados de cólera em várias povoações da margem sul do estuário do Tejo (Almada, Montijo, Alcochete) provando-se em alguns deles contactos com indivíduos residentes na região onde se registou o surto inicial. Noutros, tinha havido contactos com emigrantes ou turistas vindos de Espanha ou história de ingestão de alimentos crus... Na região de Lisboa e também num bairro de barracas (Bairro da Margueira) foi detectado a partir de 3 de Outubro um novo foco de cólera com sete casos em quatro dias...
O cerco á doença foi o seguinte: “...[4] a estratégia seguida foi a de uma acção rápida e simultânea nas áreas afectadas e zonas limítrofes, em populações particularmente expostas ao risco da doença pelas suas precárias condições sanitárias ambientais e baixo nível de educação sanitária.. No dia 24 de outubro, foram cobertos os bairros da Musgueira Norte, Musgueira Sul e Quinta do Marquês de Abrantes, no concelho de Lisboa, no fim da semana seguinte nos dias 31 de Outubro e 1 de Novembro, foram englobados os restantes bairros insalubres do concelho de Lisboa ( ver lista)...os do concelhos limítrofes (Oeiras, Sintra e Loures) e alguns da margem esquerda do Tejo (Almada, Barreiro, Moita, Montijo...)
O material envolvido: 360.000 comprimidos (“Fanasil”); 10 equipas chefiadas por pessoal especializado e com cobertura médica assegurada ; 856 pessoas nas equipas de distribuição – população abrangida, cerca de 150.000 pessoas...
Porém, e isto era o mais importante, a classe médica dava-se conta das verdadeiras condições sanitárias de muitos dos bairros das áreas mais populosas do país. Realizaram – se inquéritos que mostraram à classe médica : [5]“... o verdadeiro atraso no que dizia respeito ao abastecimento de águas, às redes de esgoto e suas estações de tratamento.
No distrito de Lisboa, refere Leopoldo de Figueiredo, por exemplo (excepto o concelho da capital e os concelhos de Oeiras, Cascais e, relativamente, os de Sintra e de Vila Franca de Xira) a população na sua maioria (com % que variam entre 50 a 100%) não dispunha de rede abastecimento de água tratada e abastecia-se de água oriunda de unidades isoladas, poços, minas ou nascentes. As análises bacteriológicas feitas a toda essa água não tratada, único abastecimento de água dessa maioria populacional, revelava que em 80% a água era suspeita ou estava contaminada (70% de contaminada e 10% de suspeita).
Em relação ao destino das águas residuais, verificou-se que praticamente não existem estações de tratamento de esgoto. Para uma população de cerca de 1 milhão e meio e habitantes do distrito de Lisboa, apenas havia no concelho de Loures uma estação de tratamento para 50.000 pessoas. O resto dos efluentes ia para pequenas linhas de água, tornando-as em autênticos caneiros abertos para o Tejo...
Nos concelhos mais distantes de Lisboa, as redes gerais de esgoto limitam-se às sedes do concelho ou a uma ou outra povoação mais importante. A maioria da população usa fossas perdidas e processos primitivos...”
Deste modo descreviam os médicos com verdadeiro espanto e horror as condições sanitárias das populações e a verdadeira bomba relógio que estás representavam em caso de uma epidemia de cólera.
Daí que não seja de espantar as medidas extremas tomadas logo nas primeiras semanas de outubro 1971, após a confirmação dos primeiros casos.
Quando as casos de extinguiram foi o momento de se iniciar, por parte daqueles que tinham tomado consciência dos perigos existentes para a saúde pública das não-condições sanitárias dos bairros degradados e do interior do país.
Nos anos seguintes, os engenheiros tiveram uma parte activa a Secção Regional de Lisboa da Ordem dos Engenheiros criava a Comissão de Engenharia Sanitária que por sua vez ajudaria a organizar no “Técnico” o 1ª Curso de Engenharia Sanitária em Portugal.
Por sua vez, os médicos traduziram inúmeras obras publicadas pela OMS sobre o assunto e debaterem os problemas inerentes à falta de condições sanitárias e procuraram estar alertas para um novo reacender da doença nos anos próximos.
Os poderes públicos alertados intensificaram os estudos para a construção de uma rede de saneamento básico cobrindo pelo menos a cidade de Lisboa e o lançamento de inquéritos para conhecer a verdadeira dimensão do problema.
Porém, mau grado o movimento que se originou por parte dos médicos e engenheiros, não houve suficiente tempo para melhorar as escassas estruturas sanitárias existentes e a 24 de abril 1974 dava-se o primeiro caso de cólera no Algarve, mais precisamente em Tavira. Três semanas depois estava em Lisboa e no Porto. A finais de Maio, registavam-se casos de cólera nos distritos de Beja, Setúbal, Aveiro e Braga... A cólera extingue-se quase simultaneamente em Faro (17 de Outubro, e Setúbal 18 de outubro e no Porto 24 de outubro e em Lisboa 25 de Outubro
Este novo surgimento da doença em Portugal iria ter consequências muito mais gravosas que em 1971. Primeiro porque a doença chegou antes do verão, aproveitando o tempo quente e depois porque, segundo alguns médicos, os poderes públicos eram outros e não tomaram as medidas necessárias de prevenção com a rapidez e energia que tinham sido tomadas em 1971.
Gonçalves Ferreira[6] refere assim “...no Verão de 1974 tendo então os governantes da saúde resolvido que a “a cólera era um problema político e não sanitário”, pelo que proibiram aos serviços de saúde, que tão boa conta tinham dado na luta contra o surto de 1971, qualquer intervenção.
O resultado foi a rápida difusão do bacilo, com milhares de casos de doença – talvez cerca de 5000, sem revelação do número exacto durante meses seguidos. Talvez pela persistência de bacilos em portadores, outro surto ocorreu no ano seguinte (1975) com menor intensidade, sem que se ficasse a conhecer a sua importância
As medidas visaram sobretudo a divulgação de medidas de higiene numa campanha maciça de educação sanitária e de instruções concretas na televisão e na radio.

Como já referi anteriormente nas epidemias causadas pelo vibrião Al-Tor o maior número de casos passa despercebido ou porque a sintomatologia é ligeira ou porque não há mesmo sintomatologia aparente. A proporção é de 25 a 100 portadores são por cada caso clínico.
Assim em 1974 foram detectados 2371 casos clínicos ou que permite desenhar um intervalo de 59.000 a 237.100 pessoas infectada.

Também Leopoldo de Figueiredo refere: “...a mentalidade agora das gentes de Portugal é outra. Tem consciência do estado deficitário do nosso saneamento e considera prioritário, neste futuro próximo, a necessidade de assegurar ao País melhoramentos gerais no que diz respeito à água, aos destinos dos lixos e das águas residuais. Não mais caneiros abertos, não mais rios poluídos, não mais água suspeita ou contaminada, abastecendo a maior parte da população. Só com uma higiene pública cuidadosa podemos ter a confiança e a certeza de que não há vibrião de cólera ou outro microorganismo patogénico que possa subsistir fora do hospedeiro e propagar assim o mal a outros indivíduos
... Em relação aos cuidados acerca das pessoas, muitos países exigem. à passagem da fronteira, o atestado de vacina anticolerica. Outros obrigam á ingestão de químico-fármacos que actuam sobre o vibrião, o que não é muito aconselhável, por certas pessoas serem sensíveis a esta espécie de medicamentos.
Não vindas munidas de atestados de vacina, as pessoas podem ficar sob vigilância até 5 dias, bastando apresentar-se nos serviços de saúde designados, uma vez por dia

CONCLUSÃO

Desta pequena resenha, várias ideias ficam:

-         duas formas diferentes de atacar o mesmo problema, o surgimento de casos de doenças contagiosas

Em 1971 os poderes públicos juntamente com os médicos fizeram um verdadeiro cordão sanitário, em redor da cidade de Lisboa. Em 1974 os poderes públicos preferiram não ter uma atitude de ataque à doença, obrigando a população a tomar medidas de higiene e de profilaxia, mas sim tentando educar as populações.
Se em 1971 a cólera em Portugal reduziu-se e foi extinta em algumas semanas, já o episódio de 1974 foi muito mais dramático. Porém, em 1971 Portugal foi penalizado internacionalmente, havendo alguns países que obrigaram os viajantes que vinham de Portugal a mostrar o boletim de vacinas, e também houve prejuízo no comércio de mercadorias. Como bem referiu Arnaldo Sampaio:” ...Portugal cumpriu escrupulosamente o regulamento Sanitário Internacional e por isso arrisca-se a figurar como sendo o país da Europa mais atingido por essa doença exótica nos últimos meses....”
Não quero tirar ilações, mas sim mostrar as duas atitudes que desde sempre tem existido por parte dos poderes públicos perante a ameaça de epidemia. Uma atitude firme e severa por parte dos poderes públicos ou uma atitude apaziguadora e de não-intervenção directa, sobretudo para não alarmar as populações nem afugentar o comércio ou o turismo como bem refere Leopoldo de Figueiredo : “...Mas a tendência, para evitar prejuízos no turismo e nas trocas comerciais, é de reduzir ao mínimo estes cuidados, na certeza de que o principal é evitar, dentro do próprio pais, que a doença possa alastrar-se, o que se consegue com um perfeito saneamento e higiene pessoal....”
Certo é que tanto em 1971 como em 1974 os médicos tiveram um papel de extrema importância nas decisões tomadas para enfrentar a doença. Em 1971 ganharam  aqueles que pensam que deve existir uma intervenção enérgica, em 1974 por considerações políticas como bem o referiu Gonçalves Ferreira e também Lobato Faria : “...Para outros, como Lobato de Faria[7]: “.... as acções empreendidas (ver Ag. 65)... foram coroadas de muito maior êxito do que as que, de natureza semelhante, tinham sido empreendidas em 1971, durante a epidemia de cólera; este facto pode atribuir-se, por um lado, á maior experiência dos serviços, mas, sem dúvida, a sua mais importante foi o clima de confiança da população nas autoridades orientadoras da campanha, clima criado após a mudança radical de regime político operada no dia 25 de Abril em 1974 em Portugal...”

- mas em ambos os episódios, os médicos referiram bem as deploráveis condições sanitárias dos bairros degradados de Portugal, nomeadamente os localizados nas duas áreas metropolitanas, Lisboa e Porto. Ambas duramente atingidas aquando da epidemia de 1974. Os médicos referiram bem que não se justificaram casos em populações servidas por uma rede de abastecimento de água e de saneamento básico. Nada que os médicos e higienistas já não tivessem referido desde o século XIX.




[1] Sampaio, Arnaldo – A Cólera em Portugal – separata de “O Médico” n.º 1056 pp. 605 / 609 vol. LXI - 1971
[2] Figueiredo, Leopoldo – Portugal na 7ª pandemia de cólera – Separata de “O Médico” n.º 1214 PP 549/555, vol. LXXIII - 1974
[3] Gonçalves Ferreira, F.A. – História da Saúde e dos Serviços de Saúde em Portugal – F.C.G. – 1990 – Pa. 555
[4] Gonçalves Ferreira, Pa. 558 E seg.
[5] Figueiredo, Leopoldo, obra citada
[6] Gonçalves Ferreira, Ag. 568 e seg.
[7] Lobato de Faria, pag. 65

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